27 de jul. de 2009

Na tentativa de fugir do que nunca aconteceu.

Ligou o som bem alto, tirou a roupa e abriu a torneira. Se olhou no espelho. As marcas do tempo estavam todas ali intactas dizendo para ela o quanto a maturidade tem sua vantagem e o quanto as marcas têm seu charme e o quanto o tempo é inexorável e o quanto nossas escolhas tem seu preço. Ajeitou as sobrancelhas com a pinça e colocou a touca protegendo os cabelos do bafo insuportável que se formava. Abaixou a cabeça e deixou que a água caísse quente e forte na nuca para ver se conseguia esquecer. Porque essa merda sempre volta na cachola?? A trilha sonora não ajudava muito. Talvez ela não quissesse esquecer, apenas esconder um tiquinho assim de si mesma o quanto determinadas coisas não se resolvem. Nem com o tempo e nem com muita disciplina.
Passou o sabonete líquido com cheiro de jasmim nas pernas e tentou nova e inutilmente se livrar daquela lembrança que era tão gostosa que dava vontade de voltar correndo para ela inteira. Um sentimento maluco e velho que a deixava sem saber exatamente se tomava banho ou se ficava suja para espantar. O tornozelo inchado da eterna busca ganhou atenção especial porque doía. Doía uma dor leve mas incômoda. A dor da não concretização que a perseguia. Clareou os pelinhos das coxas enquanto pensava sobre como sobreviver a algo tão imortal e onipresente mesmo depois de tanta ausência. Ela nunca sabia o que fazer além do banho para esquecer ou fugir. Uma passagem para Passárgada não parecia mal. Porque ele certamente não chegaria lá. Afinal ele é cagão o suficiente para nem sequer querer saber onde é Passárgada. A água quente amoleceu seus sentidos e derreteu toda a raiva que ela queria sentir mas não podia. E aquela impulsão de criança latejava poros afora. Ela queria mesmo era correr lá e dizer que enquanto não realizasse aquela porra toda ela não seria inteiramente feliz nem inteiramente inteira. Ela seria meio inteira até que aquilo tudo fosse colocado dali para fora como se coloca o lixo reciclável, como se coloca os pingos nos Is. Mas tudo que ela conseguiu fazer foi sair do banho, enrolar-se na toalha vermelha e macia, sacudir os cabelos e sentir saudades. Saudades daquela merda toda que nunca aconteceu mas que sempre latejou num ritmo charmoso e gostoso de bateria de escola de samba. Decidida, abriu aquela gaveta trancada dentro de seu peito. Ela queria tudo que era inexistente. Ajeitou a toalha que insistia em abrir sozinha para mostrar o quanto aquele corpo estava cansado da ausência de tudo e quanto aquele tudo era sua estrutura óssea mais sólida. Mas que a osteoporose destrui como a um castelo de areia feio e mal ajambrado. Abriu uma sacolinha furada de supermercado e acomodou todos os restos mortais dele com cuidado. Com sorte os restos escapariam pelo furo na sacola. Ele era a única história não história. A única coisa que ela toda besta nunca tinha conseguido realizar. E esquecer. Porque ela queria mesmo era voltar, arrebentar a porta da casa e tirá-lo de lá a força e levá-lo para qualquer canto do mundo onde ela pudesse viver aquilo mesmo que sozinha mas com a presença física dele. Lamentou um pouco o fato dele ser tão cagão, tomou uma aspirina a seco e desligou o som. Afinal aquele som em nada ajudava. Era trilha sonora daqueles filminhos merdas em que a música embala o beijo do mocinho com a dentuça feia que quase morre numa felicidade cretina de tão feliz. Ela não queria saber de felicidades. Abriu a porta da varanda, juntou os restos mortais e acendeu um fósforo. E em chamas toda história não realizada virou pó.

Enxugou o que restava de lágrima junto com o que restava da água do banho. Entrou em seu quarto, olhou em volta, checou seus mails porque de repente ele tinha escrito alguma coisa para ela nem que fosse "tchau" e abraçou a solidão que era só quem estava ali.
Deitou de lado como quem virasse as costas para um amor desinteressante e frio.
Fechou os olhos e como uma criança frustrada, dormiu.

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